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impermanências desprezadas e cultivadas

Imersa na paisagem rochosa de Tilcara, Jujuy, sente-se mais nitidamente a matéria de que o planeta se constitui. Entre as montanhas e o céu aberto, vislumbrei um verdadeiro tapete vermelho que, tardei a compreender, eram flores caídas. Olhando para cima identifiquei uma aroeira-salsa que, sabidamente, não produz flores vermelhas. Mas espere…  Aos seus galhos com abundantes folhas delicadas e elegantes misturavam-se ramos pendentes com pequenas folhas alongadas e retorcidas e muitas, muitas, flores vermelhas em diversas fases de floração. Sobre essa planta os locais sabiam apenas informar que era uma parasita e que já há quem a use para tingimentos. Foi por essa planta, a Ligaria cuneifolia, que me enamorei na residência artística no Museo en los Cerros, em junho de 2023. As obras que elaborei para a exposição coletiva CéuTerra sublinham o emaranhamento entre diferentes mundos, ou entre diferentes mundos numa só existência.

me enamorei de uma parasita

 

rondo sua existência

advinho alianças

num mundo entrelaçado

onde a desigualdade

é convite desimpedido

 

entrego-me ao voo no tapete mágico

que amor-tece o peso

entre meus pés e a terra

 

do olhar primeiro ao estranhamento

testemunho sua presença

 

deslocada pelo problema

re-pouso do céu à terra

no tapete de orações

 

o que me inspira e dentro chama

enuncia uma poética

atende a uma pergunta

− quem é você?

 

o vento a água e as abelhas me sopram que

a incompletude é amigada com o desejo

de alianças livres e honestas

 

potência efêmera-flutuante

equilibrada na espiral sanguínea-ígnea

emaranhada entre mundos não iguais

 

recusa o chão

apoia-se nas alturas

olha para a terra

 

visco e aroeira-salsa

Ligaria cuneifólia e Schinus areira

o acontecimento insiste

keila knobel, 2024

Os tempos moventes deixaram no coração andino pinceladas irretocáveis nas montanhas com dezenas de cores, que criam linhas e movimentos surpreendentes aos olhos, que flutuam e parecem se desprender do corpo. As altas montanhas da Quebrada de Huichaira, a noroeste da Argentina, no centro de Humahuaca, adornadas como pinturas do antigo, abraçam a terra, desde suas profundezas mais invisíveis até altitudes elevadas, que parecem tocar o azul celestial e seus astros. 

Céu e terra em profundo silêncio unem dias e noites, na cumplicidade de uma respiração que mantém vivo o universo. As sabedorias ancestrais demarcam pessoas e corpos, pedras, plantas e plumas, festas, cantos, comidas, sabores e aromas, montando e remontando memórias.

A exposição CéuTerra é resultado da II Residência Artística (2023), nessa região de Tilcara, organizada pelo Ateliê Casa em parceria com o Museo en Los Cerros (Mec), instalado na Quebrada de Huichaira, na Argentina. As obras nascidas dessa experiência expressam a maneira como seis artistas visuais mergulharam no coração do mundo andino. Dessa exposição participa ainda o artista e fotógrafo Lucio Boschi, diretor do Museo en Los Cerros, que acolheu e coordenou a II Residência Artística.

O conjunto de obras partilhadas em CéuTerra expõe a atmosfera de emoções silenciosas, adornadas por gestos de sol e ventos, a esculpir, sem cessar, esse território andino. A exposição é uma filigrana do coração andino e um convite a sentir-pensar esses mundos, nos quais a Mãe Terra é fertilidade, cura e reverência milenar a todas as coisas vivas e inseparáveis. 

 

Fabiana Bruno

Curadora e coordenadora do 

Programa de Residência Artística 

Março de 2024

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